domingo, 24 de setembro de 2017

Um quarto na pensão



A porta clama devagar a sua velhice com um chiar prolongado, e deixa entrar o som de um par de saltos altos que fazem ranger o velho chão de madeira na pensão. Vencido pelo absinto, estou caído sob um colchão de molas calejado que me afunda no centro da cama. A luz é reduzida e oiço a ignescência de um fósforo a acender uma vela! Ao ouvido uma voz quente e mélica sussurra-me o refrão da última música que tinha ouvido no bar ao som do piano. Lembro-me que a dancei com uma mulher linda, mas não lhe perguntei o nome. Recebo um abraço e percebo que é a mesma pessoa. Delicadamente desce a sua mão sob a minha fronte, fecha-me os olhos e acaricia-me os lábios com os seus dedos compridos. Não tinha unhas de gel, claramente eram dedos de pianista. Tenho a sensação que a última música que dançámos foi tocada por alguém do bar para que ela a dançasse comigo. E retomámos o momento… As palavras eram gestos, e os nossos corpos juntaram-se num só em busca do ruído da eloquência. De braços entrelaçados, perfumámos o corpo todo lingual e os dedos olhavam tudo por igual. Desejámos tudo em silêncio e só quebrámos a regra quando atingimos simultaneamente o orgasmo. Foi exímio. Inesperadamente cai uma lágrima do seu rosto que sinto cair na minha mão, ao mesmo tempo que a sua mão me cobria a boca evitando perguntas. Sosseguei porque senti nos seus lábios um sorriso confortante, e descansámos os dois corpos forasteiros lado a lado como se sempre se tivessem amado!

- “São onze horas e trinta minutos”, o meu relógio para invisuais acorda-me.

Ao meu lado encontro um papel em braille:
- As notas do piano foram as palavras que nos juntaram.
Obrigada pela noite.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Aguarela do outono



Estão como que escondidas. As poucas folhas do outono ainda agora começaram a cair das árvores que as seguravam. Lentamente caiem no chão e este transforma-se num lindo manto dourado. Por baixo das folhas moram pequenas formigas voadoras que fruem agora de um telhado seco que as protege das primeiras chuvas, enquanto aguardam a boleia do primeiro cogumelo que brota da terra, para sacudirem as asas.

Um manto dourado… estalante!

Um cenário numa aguarela retratada na minha mente, com o titulo: “sou o outono”!

O vento sopra agora mais frio que antes. É como que um arrepio e aconchego ao mesmo tempo. Tal como a camisola de lã vestida em cima da pele, o frio entra pela malha grossa da camiseta, mas de resto extinto pelos filamentos que roçam directamente na pele e a aquecem de novo. As sandálias ganham cabedal e sola grossa e vão sonorizando a quebra das folhas no chão, por onde caminha a Alma procurando do outro lado da aguarela um refúgio para sustentar a beleza que ali existe.

(Entretanto)

As pinceladas começam agora a enodoar a tela com tons cinza. Será que não podemos ficar com um céu azul?

A Lei cruel do inconsciente é assim mesmo. Os sonhos que idealizamos e gostaríamos de partilhar com a realidade, não passam disso mesmo. De sonhos!

Antes que o vento levante o ténue telhado das formigas voadoras, ou uma vassoura trajada de pincel borre a minha aguarela, vou submergir neste pensamento e sonhar mais uma vez!

Como a natureza é bela! Nós é que damos cabo dela!

caminhos...



Seguir, e por qual caminho seguir?

A dicotomia intrínseca leva-nos pelos caminhos mais estreitos e longos. Temos segundos para pensar e escolher qual a tatuagem que vamos produzir no corpo e mostrar ao mundo a tinta que escolhemos. Um rótulo, uma fivela cinturada nas costas ou um beijo ruidoso sugando o sangue até à epiderme. Qual? Qual a marca da existência? Estamos presos à esperança e pacatez de um silêncio estrepitoso que subtrai minutos à nossa vida, porque acreditamos piamente que iremos conseguir alcançar aquele sonho, aquela meta, aquele objetivo tão importante…

O relógio não pára! O tempo reduz-se aos ponteiros de um objeto para o qual as nossas iris estão constantemente a focar. O anelante respirar de quem busca chegar ao fim da corrida em primeiro, faz esquecer por instantes o percurso controverso que ficou para trás.

O relógio não pára! Ziguezagueamos paredes infinitas e com escadas sem degraus. Trepamos árvores sem ramos, e conquistamos um céu que não é nosso.

O relógio não pára! O nosso pé ante pé decidido por um autocolante que a vida sorteou sem o nosso consentimento. Mas nós acreditamos, vivemos acreditando na expectativa de sermos aquilo que não fomos.

O relógio não pára!

Parou. O tempo.

A meta está mesmo ali. Por segundos olhamos para o horizonte cinzento que deixámos na retaguarda. Descalçamos os sapatos, tiramos as várias máscaras que usámos. Tudo é muito cinéreo. As cores dos sorrisos ficaram presas às tarefas. Os trevos da sorte plantados para chegar aqui, secaram. E quem somos nós? Somos aquilo que não fomos. Somos quem não somos. Vivemos como não deveríamos ter vivido. Uns descontentes focalizados, materiais de uma vida abstracta e descolorida, capaz de trucidar aqueles momentos impetuosos, em que quisemos mudar a nossa trajectória à força.

Não fomos felizes, e nisso temos culpa!

nc